quarta-feira, 2 de julho de 2014

“Estamos a mascarar o trabalho infantil com um ensino supostamente vocacional”


Entrevista

MARIA JOÃO LOPES - Público

Ex-ministra Maria de Lurdes Rodrigues diz que os novos cursos vocacionais são “trabalho infantil encapotado” e que o “défice de qualificação de adultos” é “um obstáculo” ao crescimento do país.

Apesar do que falta fazer, tem “orgulho” na escola pública construída depois do 25 de Abril. A ex-ministra da Educação Maria de Lurdes Rodrigues organizou uma obra com artigos de investigadores e ex-governantes, na qual se olha para 40 anos de políticas de educaçãoem Portugal. O primeiro volume é apresentado nesta quarta-feira, numa cerimónia que conta com, entre outros, David Justino, Artur Santos Silva, Guilherme d'Oliveira Martins e Eduardo Marçal Grilo. A antiga governante encara com naturalidade quem a critica: “Estamos em plena democracia.”

No livro, depois de olhar para 40 anos, fala sobre o futuro das políticas de educação e encontra cinco grandes desafios: concretização da escolaridade obrigatória, unificação das vias de ensino na escolaridade, autonomia e organização pedagógica das escolas, educação e formação de adultos, e avaliação e regular e sistemática do impacto das políticas de educação. Porquê estes temas?

Estão sempre presentes no nosso sistema de ensino. E neste momento enfrentamos alguns desafios que se relacionam com esses tópicos. Por exemplo, não chega ter instituído a escolaridade obrigatória, é necessário garantir que todos os alunos aprendem, que têm um percurso escolar de êxito. A questão da unificação das vias de ensino é diferente. Como temos um elevado nível de insucesso escolar, somos muitas vezes tentados por soluções que não o são. Resolver o problema do insucesso, enviando alunos para empresas ou arranjando um sistema de ensino dual que retira a possibilidade de os jovens fazerem uma escolaridade básica longa é uma via que compromete o futuro dos jovens e do país. Apesar de todas as dificuldades, devíamos continuar a apostar no sistema unificado de ensino e numa escolaridade básica unificada, tão longa quanto possível, no nosso caso de nove anos. Isso devia ser discutido. Já a educação de adultos foi uma área em que a mudança falhou. Não fomos capazes de construir um sistema de formação ao longo da vida, baseado na escola, na certificação das competências e dos conhecimentos escolares. Não fomos capazes de ter políticas de continuidade sustentáveis que nos ajudassem a superar o défice de educação de adultos.

A certa altura no livro diz que “é preciso contrariar a tentação de definir cedo de mais o destino dos jovens, encaminhando-os para vias vocacionais marginais”. Uma das críticas do Conselho Nacional de Educação aos novos cursos vocacionais [de dois anos e dirigidos para quem vai para o secundário] prende-se com o facto de poderem ser feitos não apenas num modelo integrado, metade escola e metade local de trabalho, mas na totalidade numa empresa ou num centro de emprego. Também não vê com bons olhos este caminho?

Não vejo eu e não vêem muitas pessoas. Por isso é que devia ser um tema debatido e consensualizado. Com os níveis de abandono que temos, tem sido muito difícil concretizar a escolaridade básica de nove anos, é um problema. Mas a solução não é encaminhar os alunos do insucesso para as empresas ou para vias que são marginais. Isso é uma via de facilidade que vai comprometer o nosso futuro e o dessas crianças. Eu ainda vivi as políticas públicas de combate ao trabalho infantil. Os nossos jovens começavam a trabalhar com 12, 13, 14 anos e nós lutávamos contra isso. O país investiu imensos recursos em políticas de combate ao trabalho infantil. E agora estamos a mascarar o trabalho infantil com um ensino supostamente vocacional? E desde quando é que as empresas têm vocação de ensinar? A instituição que o país criou para ensinar e acolher os jovens foi a escola, não as empresas. As empresas têm outras missões, podem ajudar a escola, podem ter estágios, mas não podem ser responsabilizadas pela educação das crianças. Vamos voltar a um trabalho infantil encapotado. Isso é muito negativo. Não estou a invocar que tenho razão, mas há outros portugueses a pensar como eu. É um debate que divide a sociedade portuguesa.

É por isso que na obra diz que, a partir de 2011, a execução do programa de ajustamento orçamental justificou medidas que, sem debate, consenso ou compromisso, contrariam princípios estabelecidos na Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) e na Constituição? Os novos cursos vocacionais são uma dessas medidas?

É um exemplo, há outros. Como o facto de não haver uma oferta formativa para educação de adultos. Não há nada. Diminuiu-se de tal forma o serviço público na área da educação ao longo da vida que não há rigorosamente nada. É evidente que está consagrada na LBSE a necessidade da oferta pública de educação de adultos também.

Refere-se ao facto de se ter descontinuado o Programa Novas Oportunidades?

E de não ter sido substituído por nada.

Foto: Nuno Ferreira Santos
                                                           fonte:Página Global

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