sexta-feira, 27 de junho de 2014

Criança transgênero e a importância do respeito às escolhas

CRIANÇAS COMANDAM OS ADULTOS & DITA O FUTURO(o blog comenta)  

Meninos que se identificam com meninas e vice-versa: estamos preparados para aceitar e respeitar o que não é o convencional, dentro e fora dos nossos lares?

Por Ana Kessler 
Amor tem sexo? Essa foi a primeira pergunta que me fiz quando surgiu a proposta de escrever sobre a história de Ryland Whittington (foto), 6 anos, e o conceito de identidade de gênero na infância. Nascido menina, Ryland nunca se identificou com o seu sexo e afirmava que era um menino. No início, surpresos e imaginando ser uma fase, os pais não deram bola. Mas quando, aos 5 anos, a criança começou a rejeitar veementemente o universo feminino e exclamar “Por que Deus me fez assim?”, os pais consultaram especialistas, pesquisaram sobre o assunto e chegaram à conclusão: Ryland é transgênero.

Transgeneridade é quando a pessoa, neste caso uma criança, não se expressa ou se identifica com o sexo designado ao nascer e não se comporta conforme o que esperam dela. A família de Ryland ficou chocada quando descobriu que 41% dos transgênero tentam cometer suicídio por não serem aceitos socialmente. É claro que os pais não queriam este destino para o seu filho. Sim, filho. Passaram a se dirigir a ele no masculino, cortaram seu cabelo curtinho, redecoraram seu quarto, compram-lhe novas roupas e o mais importante: corajosamente anunciaram a todos os familiares e amigos a mudança. Deram seu incondicional apoio ao fruto do seu amor e validaram os sentimentos da criança. 

Alguns amigos não concordaram com a atitude dos pais e se afastaram. Outros abraçaram a decisão e a abençoaram. O que é mais importante, a opinião da sociedade ou a felicidade do filho? No vídeo que os pais fizeram para contar a história da transformação, eles deixam claro: “O que nós aprendemos é que a maioria das crianças percebe seu “verdadeiro gênero” entre 3 e 5 anos de idade. A identidade de gênero de Ryland não foi causada por nosso estilo de criação, estrutura da família ou fatores ambientais. Em relação aos horrores que as pessoas têm que passar com suas crianças no mundo inteiro, isto não é nada. Ele ainda é saudável, lindo e extremamente feliz”.

Antigamente, quando nascia um bebê, mal ele inspirava o primeiro sopro de ar livre fora do ventre materno alguém o aprisionava em um destino certo: é varão, vai ser advogado, doutor como o pai. É menina, vai se casar com o primo Alípio. E lá iam os adultos comemorar, deixando a pobre criança aos berros com seu cordãozinho umbilical enrolado no pescoço, já com seus sonhos, ambições e desejos enforcados. Colocamos um filho no mundo para que satisfaça nossas expectativas ou para amá-lo e respeitá-lo, apoiando-lhe em suas escolhas?

Devemos impor o sofrimento ao outro tentando mudá-lo para que se transforme no que nós achamos que é melhor para ele e para que se adeque às nossas preferências ou devemos mudar a nós mesmos e nossos conceitos e preconceitos? Gostaríamos que os outros nos impusessem seus gostos e nos dissessem do que podemos ou não gostar? Até que ponto nós, pais, estamos preparados para aceitar e respeitar o que não é o convencional, dentro e fora dos nossos lares? Como educamos nossos filhos diante das diferenças de gênero, raça, credo? São muitas as reflexões.

Quando morávamos no Rio, Ana Bia tinha uma coleguinha que frequentemente lhe confidenciava: “Não conta pra ninguém, mas eu quero ser menino”. A menina gostava de futebol, capoeira, de brincar de luta com os garotos, absolutamente não se interessava pelo universo cor-de-rosa das princesas e afins. Mas, sim, também tinha amigas meninas e brincava com elas. Afinal, o fato de se identificar com o gênero masculino não a fazia rejeitar ou ter preconceitos contra o feminino. Era pura e simplesmente uma questão de preferência, de afinidade, de gosto. Ser diferente é ser normal. Quem de nós é igual ao outro?

A escola, da linha Construtivista, era orientada para o diálogo, o exercício da escolha, a formação do autoconceito positivo. Era agregadora e ensinava às crianças o conceito de igualdade e respeito às individualidades, de forma que a coleguinha pode se desenvolver num ambiente de aceitação e afeto. Os pais a deixaram livre para se expressar e praticar os esportes que gostasse, sem julgamentos. Cresceu e continua uma criança linda e feliz, como Ryland, como Shiloh, filha de Angelina Jolie e Brad Pitt, que também se identifica com o gênero masculino, gosta de ser chamada de John e tem plena liberdade para se sentir bem na própria pele. Infelizmente, nem todos têm a mesma sorte.

Deixo abaixo o impactante depoimento de Daniela Andrade, mulher trans, analista de sistema, militante e ativista pelos Direitos Humanos. Impossível não se comover com o relato sobre sua infância marcada por espancamentos, incompreensão e desamor, e ao imaginar os horrores que, como criança indefesa, passou. Encerro com o pensamento de Voltaire: “Não concordo com nenhuma das palavras que me diz, mas lutarei até com a minha vida se preciso for para que tenhas o direito de dizê-las”. Troque o contexto do verbo “dizer” por preferir, expressar, amar. Reflita.

Com a palavra, Daniela Andrade:

“Eu fui socializada como oprimida e não como opressora, não houve um momento da minha vida que eu me vi, que eu me comportei, que eu me reivindiquei homem. Ao contrário, eu tinha verdadeiro horror quando me tratavam como menino, eu tinha uma vontade de regurgitar quando me colocavam no grupo dos meninos, nunca consegui me ver como um deles. E por isso apanhei a vida inteira dos meus pais, que me espancavam com fio de aço, com borracha de mangueira, com madeira para "eu virar homem". Meu pai uma vez me bateu tanto que minha mãe - a mesma que sempre disse que eu não podia ter saído da barriga dela, que eu deveria ter sido trocada na maternidade - interviu dizendo que se ele não parasse, eu teria que ir pro pronto socorro e aí ia ficar feio. As dores físicas eram menores que as psicológicas, mas doiam de morte. Quando ele me surrava, ele dizia que ia me quebrar até eu virar homem.

As pessoas me agrediam na rua, na escola, no bairro por que estava bem claro para todos que eu não era como os demais, eu era muito diferente e a sociedade não perdoa os diferentes. Os meninos sempre me viram como inferior a eles, pois nunca me comportei, nunca me reivindiquei como um deles. Aliás, a escola foi um ambiente extremamente opressor, fiquei 11 anos lá e tive apenas 2 amigos: um garoto negro e uma garota negra, ambos escorraçados também do restante do grupo por conta do racismo. Jamais me escolhiam para fazer trabalho em grupo, e na aula da educação física, eu sobrava e o professor forçava que eles me colocassem em algum time. Aliás, as aulas de educação física foram um capítulo de violência à parte em minha vida. Na quarta série e quinta série do fundamental falsifiquei um atestado de que eu trabalhava para não voltar mais lá. Foi em uma dessas aulas que um menino começou a me espancar dizendo que eu precisava virar homem, enquanto os demais aplaudiam.

Não havia com quem desabafar, para onde me voltar para ter as palavras de conforto que eu precisava. O restante da família apoiava a violência. Um tio meu dizia que eu era a vergonha de todos, e toda vez que ele me via com outras meninas ou acossada dentro do quarto onde minhas tias conversavam, ele intervinha dizendo que eu tinha que estar com os meninos, que eu tinha que me tocar que ali era assunto de mulheres. Ele fiscalizava o tempo todo meu comportamento, quando eu saia do banho, ele dizia que a toalha tinha que estar na cintura pois eu era homem, não cobrindo o peito. Mas eu tinha horror de tirar a camisa e mostrar os peitos como os outros meninos, na realidade, fazer isso significaria para mim ser como um deles, o que nunca consegui me ver sendo. Uma vez ele me humilhou na frente dos parentes da esposa dele, dizendo que eu tinha que tomar vergonha na cara e virar homem, isso tudo por que ele me pegou fazendo tricô e os parentes dele viram também. Nunca me esquecerei desse dia, fiquei dias remoendo aquilo dentro de mim.

Lembro quando uma tia minha uma vez me comprou uma pipa - eu sempre detestei todos os brinquedos considerados masculinos, e me disse: "Você precisa brincar com brinquedos de meninos". Dei as costas e saí, e ela achou aquilo um absurdo, e me falou horrores. Jamais gostei de nenhum brinquedo que me davam, na loja de brinquedo, muito criança, corria para a seção das meninas e ficava horas lá se deixasse. Morria de inveja da minha irmã que ganhava as bonecas que eu tanto desejava, ficava de longe admirando ela brincar e sabia que não podia chegar perto, pois das vezes que tentei, foram surras que minha mãe me deu.

As surras eram tão constantes que um dia eu disse para ela que iria denunciá-la para o SOS Criança. Eu tinha visto na TV que agressão contra criança era passível de denúncia e repeti o que ouvi. Ela ficou ainda mais agressiva, e sempre contava à noite, quando meu pai chegava do trabalho, o que eu tinha "aprontado" para ser surrada mais uma vez, ou então deixava-me ajoelhada no escuro, trancada na varanda, esperando ele chegar; e dizia: vou ver de vez em quando se você está de joelhos, se não estiver, já sabe o que vai acontecer.

Adorava gibis, juntava todas as moedas que me davam para comprá-los. Era um refúgio diante da minha tristeza. Colecionava tantos, que formaram uma pilha, eram meu xodó. Uma vez, minha mãe extremamente descontrolada por que eu me recusava a deixar de cantar uma música da Simony bem alto na frente de casa, música essa que o refrão era "Acho que estou louca, louca muito louca", o que fazia ela considerar que era uma afronta e um imã para os vizinhos me xingarem de traveco, bicha, boiola; ela pegou todos os gibis que eu tinha, colocou em um saco e jogou no córrego que passava no final da rua onde eu morava. Foi como se tivessem jogado fora uma parte do meu coração, nunca me esqueci de como aquilo me fez sofrer.

Um dia ela me perseguiu com um pedaço de madeira para me bater, pulei o portão de casa e fiquei na rua durante horas, sentada na calçada. Tentei me matar algumas vezes, em todas elas eu fui surrada por ter tentado. A morte soava como uma doce melodia aos meus ouvidos, chegou um tempo em minha vida que eu considerava que ela seria a única solução para todos os meus problemas.

Meus pais me levaram no terreiro de candomblé, na umbanda, no psiquiatra. Queriam me "curar" daquilo que eu era, daquilo que sempre fui: mulher.

Lembro do meu pai me ensinar como um homem devia andar, e meu corpo mole se requebrando era uma afronta para ele. Quando alguém na rua me gritava: "mulherzinha", chegávamos em casa e eu sabia que era mais uma surra. Isso sem falar as palavras horríveis que ele sempre me dizia antes de me surrar: de que eu terminaria aidética, sozinha e na cadeia, pois esse era o destino de "todo travesti (sic)" - para ficar em apenas uma das frases que ele dizia e que me marcaram.

Jamais na minha vida nenhum dos dois me disse que me amava, pelo contrário. Eu passei a infância inteira me sentindo um estorvo. Os dois eram extremamente religiosos, e me fizeram acreditar durante anos que eu tinha culpa por não ser como Deus aceitava. Que eu iria arder no inferno. Meu pai me dizia para eu pedir para Deus mudar meu jeito de ser. E eu pedia, pedia para Deus me levar embora o quanto antes, eu pedia quase todos os dias para que aquele inferno acabasse. Eu pedia que Deus me matasse.
Deus nunca apareceu para me ajudar. As agressões continuaram.

Um dia uma tia espalhou para o restante da família que eu tinha HIV, o grande detalhe é que eu era virgem - e mesmo que eu tivesse HIV, não seria direito dela fazer aquilo. Quando descobri, fiquei arrasada. Eu sentia que todas aquelas pessoas que se diziam da minha família eram na verdade estranhos, estranhos que faziam parte da minha vida com o único intuito de me agredir.

Tive um tio, já falecido, que um dia me disse que eu era a maior bicha louca que ele já tinha conhecido. Eu era apenas uma criança, e um dia sai de carro com ele, que estacionou em um lugar proibido e disse que iria pegar um pacote sei lá onde e já voltava, e que se algum guarda aparecesse, era para eu avisá-lo. Ele saiu, eu fiquei no carro, o guarda apareceu e colocou a multa debaixo do limpador do parabrisa, isso antes de eu ter reação para qualquer coisa. Quando ele viu aquilo, ficou possesso e me falou barbaridades, frisando sempre como era nojento eu não me comportar como um homem, que para ele eu não era um homem.

Essas palavras que a gente vai ouvindo de pessoas que somos obrigadas a conviver vão marcando a gente de uma forma tão angustiante, elas criam raízes muito profundas. Eu vou levar tudo o que eu ouvi dessas pessoas até o dia da minha morte.

É extremamente difícil lembrar de tudo isso, lembrar que meu pai e minha mãe nunca foram pai e mãe de verdade. Não tem como eu esquecer, não tem como eu apertar um botão e tudo se esvair e a minha vida se modificar.

Hoje não há nenhuma dessas pessoas que a sociedade nomeia como parentes consanguíneos em minha vida. Saí da casa dos meus pais, meus irmãos continuaram morando com eles. Faz muito tempo que não sabem nada sobre mim, que não me ligam, que não se importam se estou bem ou mal, se morri ou estou viva, se estou passando fome ou se tenho o que comer. Isso não é uma coisa fácil, isso não é tão simples, estou falando de pessoas com quem convivi ao longo de uma vida, estou falando de pessoas que a sociedade inteira diz que faz parte de instituições sagradas e divinas: a mãe e o pai.

Não, eu não fui socializada para oprimir, eu não tive uma vida maravilhosa sendo tratada como homem, pelo contrário; eu só conheci violência”.

*Imagens ilustrativas extraídas do vídeo de Ryland Whittington

FONTE : MSN


O QUE VOCÊ  LEITOR  ACHA DISSO TUDO ?
COMENTE ...   EXPRESSE SUA OPINIÃO  !

Nenhum comentário:

Postar um comentário

parcerias